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08/12/2019

Conheça as histórias de quem é enterrado em cova rasa no Caju, destino de um terço dos corpos sepultados no Rio

Foto: Divulgação

Todos os dias, os corpos de homens e mulheres são enterrados em algumas das 13.300 covas rasas do Cemitério São Francisco Xavier, o Cemitério do Caju.

Todas as memórias de uma vida deixadas sob 80 centímetros de terra. O carinho de avó da diarista Maria Lúcia dos Santos, de 57 anos, não vai mais acalentar o choro dos netos.

 

A alegria da dona de casa Rita de Cássia de Oliveira, de 49 anos, nunca mais vai ser vista por parentes e amigos. A generosidade do recepcionista Gustavo Rocha da Silva, de 37 anos, não será mais percebida no hotel onde trabalhava.

 

Diariamente, os corpos de homens e mulheres são enterrados em algumas das 13.300 covas rasas do Cemitério São Francisco Xavier, conhecido popularmente como Cemitério do Caju, na Zona Portuária do Rio. Lá dentro, num retângulo de 2 metros por 70 centímetros, terminam sonhos e lembranças. Histórias viram apenas um número pintado de preto numa cruz fincada no chão seco.

 

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No imaginário da população, as covas rasas representam a desonra à memória de uma pessoa, significam a despersonalização do ente querido, que passa a não ter mais um nome, uma imagem e um lugar para chamar de seu. Ali, sob o pó da terra, vidas ficam para trás.

 

A legislação estabelece o fim das covas rasas nos cemitérios até 2025.


Durante cinco dias, o EXTRA acompanhou 29 sepultamentos feitos da forma mais antiga que se tem conhecimento. Hoje, em média, a cada três pessoas enterradas no Caju, uma é em cova rasa — os números deste ano indicam 1.902 sepultamentos entre os 5.820 realizados no total. Apesar dos altos números, a legislação estabelece o fim das covas rasas até 2025 — que, após 168 anos de uso no cemitério, serão substituídas por gavetas ecológicas, chamadas de jazigos sociais.


Com o tempo, as covas deixaram de ser apenas a morada de indigentes e marginalizados, tradição até o início do século 20. Hoje, tornaram-se a última morada de pessoas que constituíram uma família, que tinham amigos, um emprego. Num cenário de crise econômica, covas rasas custam até 40% a menos do que as gavetas. Mesmo assim, saem por cerca de R$ 2 mil.

 

— A minha mãe era o alicerce da nossa casa, era tudo para a gente. Ela morreu feliz, disso tenho certeza. Deixou cinco filhos, netos e bisnetos. A minha mãe não iria se importar com o luxo dos mármores e granitos usados num mausoléu.

 

Para ela, o importante era que os filhos tivessem o armário cheio de comida. Minha mãe não ia esquentar se teve velório ou não — conta a atendente Ana Paula dos Santos, de 37 anos, que perdeu a mãe após Maria Lúcia dos Santos morrer vítima de um edema pulmonar, na Pavuna, Zona Norte do Rio.

 

Funcionário prepara mais uma cruz: covas rasas custam até 40% menos do que gavetas e são opção em plena crise econômica, mas ainda assim saem por cerca de R$ 2 mil.Funcionário prepara mais uma cruz: covas rasas custam até 40% menos do que gavetas e são opção em plena crise econômica, mas ainda assim saem por cerca de R$ 2 mil. Foto: Pedro Teixeira.
‘Foi uma vida difícil’

 

Às vezes, a dor de um sepultamento é somada ao sofrimento pela despedida inesperada. Aos 42 anos, a dona de casa Joelma Braga de Moraes perdeu a batalha contra um tumor na cabeça e morreu no último domingo, após dois meses de sofrimento. No enterro, cerca de 15 amigos e parentes mostraram toda a via-crúcis vivida pela família.

 

— A Joelma sofreu muito durante sua vida. Foi uma vida difícil — diz o irmão da mulher, sem se identificar.

 

Para outros, o que fica é a resignação. A dona de casa Rita de Cássia de Oliveira, de 49 anos, morreu após complicações de um transplante de rins. Na despedida, os parentes mostraram-se fortes.

 

— Ela era incrível, gostava de aproveitar a vida e ser feliz. Essa é a imagem que vamos guardar. Mas, infelizmente, a infecção não foi controlada. Sabemos que minha mãe está bem — afirma uma das filhas de Rita de Cássia, a manicure Luciene de Oliveira, de 31 anos.

 

Despedida em 30 minutos

 

Os sepultamentos em cova rasa geralmente são realizados sem velório na capela — que pode custar até R$ 600, de acordo com a Tabela Cemiterial Municipal de 2018, que indica os valores a serem cobrados por cemitérios públicos, como é o caso do Caju, hoje administrado pela empresa Reviver.

 

Nesses casos, as famílias têm direito a 30 minutos para se despedir do ente querido, numa área onde há quatro bancadas de pedra e tendas azuis. Dos 29 sepultamentos em covas rasas acompanhados pelo EXTRA, apenas seis tiveram velórios em capelas alugadas.

 

Ainda segundo os valores estipulados pela legislação, um enterro em cova rasa gera os custos da tarifa de abertura, do transporte interno do corpo, da baixa à sepultura, do fechamento e da vedação da sepultura, de R$ 272,85; da taxa de exumação, de R$ 545,57; e do aluguel da cova, de R$ 50,85 por ano; mais as taxas administrativas e as despesas com o caixão, que varia conforme o modelo e o material de fabricação.

 

Mal súbito no banho

 

Quando chegou ao Cemitério do Caju na última segunda-feira, a vendedora Andreia Sobrinho, de 37 anos, foi acolhida num abraço de solidariedade. Cercada de amigos, a mulher mostrava-se descrente com a morte do marido, o recepcionista de hotel Gustavo Rocha da Silva.

 

— Nós sabemos que vamos partir deste mundo, mas não queremos que aconteça de forma trágica.

 

Gustavo morreu após um mal súbito durante o banho. As horas passadas sob a água muito quente deixaram queimaduras por todo o corpo.

 

Flamenguista apaixonado, cada jogo era sinônimo de nervosismo para o amigo “íntegro e generoso”.

 

— Ele estava sempre feliz e tratava todos com carinho e respeito — lembra Cláudio Giudugli, gerente do Hotel Mirasol.

 

A legislação estabelece o fim das covas rasas nos cemitérios até 2025.

 

Construído sobre um cemitério de escravos

 

O Cemitério do Caju é a maior necrópole do Rio de Janeiro e uma das maiores do Brasil, com cerca de 84 mil sepulturas. Foi fundado em 18 de outubro de 1851, bem próximo à extinta Praia de São Cristóvão. No mesmo local, já existia um cemitério de escravos e indigentes desde 1839. O historiador Milton Teixeira conta que o local surge a partir de um decreto do Imperador Dom Pedro II, proibindo sepultamentos dentro de igrejas. Até então, havia apenas um cemitério nesse contexto, no Castelo, que estava lotado.

 

— O governo desiste de administrar cemitérios e estabelece uma concorrência, vencida pela Fundação Santa Casa, que ficou 150 anos à frente do Caju. Só que a localização do cemitério era distante, a viagem poderia durar quase um dia, o que tirou o prestígio do local promissor — explica o professor, que realiza visitas guiadas em cemitérios do Rio.

 

Funcionário prepara mais uma cruz: covas rasas custam até 40% menos do que gavetas e são opção em plena crise econômica, mas ainda assim saem por cerca de R$ 2 mil.

Fotos: Reprodução

 

Segundo Teixeira, foram necessárias diversas mudanças no terreno, ao longo dos anos, para tornar a área pantanosa mais plana e seca. Para os aterros, utilizou-se a terra de um morro que existia ao norte do cemitério. No início, as sepulturas temporárias eram alugadas por sete anos. Mas as famílias também podiam comprar jazigos perpétuos.

 

O professor destaca algumas sepulturas notáveis que já passaram por histórias curiosas.

 

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— Lá, estão enterrados Cartola, Barão do Rio Branco, Noel Rosa e outras personalidades históricas. A sepultura de Tim Maia, por exemplo, foi devastada pelos fãs, que só não levaram o caixão porque não conseguiram. Já o jazigo do traficante Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, morto em 2002, foi metralhado por criminosos em janeiro de 2006 — enumera ele.

 

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