23 de Abril de 2024 - Ano 10
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Bizarro
30/01/2020

Um beijo após cinco tiros: por que uma vítima de agressão perdoou o homem que tentou matá-la?

Foto: Divulgação / Álvaro Pegoraro

Ciclo da violência e cultura que ensina mulheres a sonharem com casamento e homens a serem agressivos colaboram para relações abusivas

 Sem contexto, a fotografia parece retratar o final feliz de um filme clichê norte-americano, no qual um casal se beija apaixonadamente.

 

Mas a guarda sentada ao fundo, com uniforme da Polícia Penal, denuncia a realidade: no Tribunal do Júri de Venâncio Aires, uma mulher beija o homem que acaba de ser condenado a cinco anos de prisão por tentativa de feminicídio, após disparar sete tiros contra a então namorada e acertar cinco. A imagem, publicada na segunda-feira (29), subverte as expectativas.

 

Apesar de soar absurda, a história do casal é comum em tribunais e delegacias, afirmam especialistas consultados. Desta vez, o casal discutiu em uma praça, na presença de amigos.

 

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Após sair do local e buscar um revólver, o namorado voltou e disparou sete vezes contra a companheira, que foi para o hospital. Enquanto ele estava preso, a mulher solicitou medida protetiva – depois, voltou atrás e pediu autorização para visitá-lo na prisão, porém a Justiça negou.

 

A volta da vítima a seu algoz não ocorre por mera ignorância ou gosto por apanhar: é fruto de um histórico de agressões do dia a dia em que o homem culpa a companheira por "perder a paciência" e a mulher naturaliza a violência. Ambos ficam presos em um looping do qual é difícil sair. Na psicologia, isso recebe o nome de "ciclo da violência" e é dividido em três fases: aumento da tensão (quando o homem apresenta comportamento instável), explosão (agressão de fato) e lua de mel (quando ele se arrepende e passa a se comportar bem por um tempo). Após o período estável, o ciclo volta à primeira etapa.

 

— Não há violência física sem antes ter havido violência psicológica. Quanto mais grave a violência física, mais antiga é a violência psicológica instalada. Isso prepara um terreno e despedaça a vítima, transforma ela em um nada a ponto de fazê-la acreditar que não vale nada sem o homem e que é preciso fazer tudo para tê-lo a seu lado — explica a promotora Ivana Battaglin, acostumada a lidar com esse tipo de caso na Promotoria de Justiça Especializada de Combate à Violência Doméstica de Porto Alegre.

 

A mulher tem dificuldades em libertar-se também porque nossa cultura ensina que é preciso sempre manter a família unida ou que mulheres têm mais valor se forem casadas, destaca a psicóloga Júlia Zamora, doutoranda na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e integrante do grupo de pesquisa Violência, Vulnerabilidade e Intervenções Clínicas.

 

— Em atendimentos de mulheres que sofreram violência, é comum elas relatarem ter ouvido que não seriam ninguém se fossem divorciadas, ou que os filhos serão prejudicados. E estamos em 2020. Quando o parceiro muda para melhor, é uma mudança temporária e, quando o ciclo da violência recomeça, é mais violento. Temos que considerar que a pessoa que foi violenta é importante para a mulher. Pode ter raiva e ódio, mas também amor, o que dificulta ver a situação de dentro — pontua.

 

Para o psicanalista e escritor Mario Corso, a fotografia ilustra a crença exagerada na força do amor, visto como potente o bastante para vencer qualquer barreira.

 

— Muitas mulheres não saem de relacionamentos abusivos e agressivos porque acreditam que o amor resolve todos os problemas, inclusive a loucura. Mas não: às vezes, as diferenças são intransponíveis. Que ferida narcísica ele levou a ponto de se sentir autorizado a tirar a vida de outra pessoa? Ele acertou cinco tiros, não é assassino por um detalhe. E ela acha que vai curar essa pessoa. Isso é esperar demais do amor — reflete Corso.

 

O psicanalista destaca, também, a indignação que a imagem causa: ao ver a mulher agredida trocando afeto com o agressor, nós, espectadores, nos sentimos usados.

 

— As pessoas se sentem palhaças ao ver Chapeuzinho Vermelho dando um beijo no lobo mau. A Justiça gastou dinheiro, a polícia gastou dinheiro, o hospital gastou dinheiro, a família e os amigos se dedicaram... Todo mundo investe em cuidar dela e ela não se cuida. Essa é a nossa revolta. Ela vai cuidar do agressor, que bagunçou a vida dela e de todo mundo.

 

Ele, o agressor, também diz muito de nossa cultura: em uma sociedade na qual homens aprendem que não podem ser sensíveis, a indignação não consegue ser comunicada em palavras e se dá, portanto, pela violência, reflete Maria Ângela Bulhões, psicóloga do ambulatório Melanie Klein, do Hospital Psiquiátrico de São Pedro, e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa).

 

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— Viver em civilização é controlar impulsos, e é a palavra que civiliza. Mas nossa cultura gaúcha considera a palavra como algo feminino. O homem não está acostumado a falar de sentimentos e não sabe se defender com palavras. Ele fica possuído pela raiva e ela fica culpada porque entende que o possuiu. A Eva que é responsável pelo pecado e leva Adão ao inferno — destaca.

 

GaúchaZh

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