NOTÍCIAS
Ciência e Tecnologia
Bebê reborn e IA conselheira: chegamos no 'vale da estranheza' da intimidade?
Foto: Reprodução

Na era das relações hiper-realistas com bonecas e algoritmos, vínculos artificiais deixam de parecer exceção e passam a revelar um modo de estar no mundo

Vestindo luvas cirúrgicas e máscara, uma jovem rasga uma membrana translúcida com um bisturi. De dentro, escorrega um bebê de três quilos: pele rosada, corpo mole, cabelos finos.

 

Um choro gravado ecoa pela sala, mas o bebê não se mexe. A boca também não. A sala não é um hospital e a jovem não é médica. Ela é uma artesã vendendo seu produto. Porque o bebê, na verdade, é um boneco.

 

A cena faz parte do arsenal de imagens da comunidade reborn, um universo dedicado a bonecas hiper-realistas. As “cegonhas” (artistas que produzem os bebês reborn) dividem o dia a dia simulado de um bebê reborn, como se ele fosse humano. Filmam troca de fraldas, idas ao médico e passeios no parque com os seus bonecos.

 

Veja também

 

Sonda soviética que poderia cair no Brasil entrou na Terra. Veja onde

 

Espaçonave soviética caiu no Oceano Índico após 53 anos no espaço

 

As criadoras de conteúdo sobre bebê reborn estão crescendo no Brasil. Só um vídeo de uma das “cegonhas” chegou a 111,5 milhões de visualizações. O país é o segundo maior produtor de conteúdo para a palavra-chave “bebê reborn”, segundo o Google.

 

Só que elas não estão sozinhas quando o assunto é “Black Mirror virando real”. Do outro lado da internet, outro fenômeno está acontecendo: cada vez mais pessoas fazem confidências e pedem conselhos para os chats de inteligência artificial. De acordo com pesquisa realizada pela TalkInc, um em cada 10 brasileiros usa chat de IA para desabafar, conversar ou buscar conselhos.

 

O CEO da Meta, Mark Zuckerberg, afirmou em entrevista a um podcast norte-americano que acredita que as pessoas terão mais amigos de IA do que amigos humanos.

 

Para quem está de fora, tudo isso parece deslocado. Ou exagerado. Ou simplesmente estranho. É um desconforto difícil de nomear, algo que se parece demais com o humano, mas não o suficiente. Artificial demais para ser confiável. Vivo demais para ser robótico.

 

No mundo da robótica, há um termo que tenta explicar esse sentimento: uncanny valley, ou “vale da estranheza”. Trata-se da reação ambígua que temos diante de objetos que se aproximam demais da forma humana sem de fato sê-lo. Quanto mais semelhantes a nós, mais atraentes. Até que, em determinado ponto, a semelhança excessiva provoca o oposto: inquietação.

 

Segundo o psicanalista e escritor, Christian Dunker, o desconforto gerado por esse tipo de vínculo não é novo, mas está se atualizando com a tecnologia, que fica cada vez mais parecida com o ser humano.

 

“Esses processos são perturbadores porque eles afetam nosso senso de realidade. A nossa relação entre verdade e fantasia fica embaralhada”, diz Dunker, que é professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e autor de diversas obras, entre elas o livro "Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano" (Editora Ubu, 2023).

 

OS LIMITES FORAM ATUALIZADOS

 

bebês reborn/ produção

 

Tal confusão entre o real e o artificial é o reflexo de um sintoma mais profundo da desconexão entre mundo digital e mundo físico. Para o pesquisador e psicanalista André Alves, cofundador do Instituto Float, o fenômeno do bebê reborn e dos bots de AI apontam para uma mudança mais preocupante: a erosão dos limites entre o real e o imaginário, o concreto e o simbólico.

 

“Ao longo dos últimos anos fomos perdendo a capacidade de sustentar um espaço intermediário entre a realidade e a fantasia. E esse é o espaço onde a brincadeira acontece, onde a ilusão faz sentido. No lugar disso, passamos a terceirizar a mágica para objetos e para a tecnologia”, diz Alves.

 

Essa erosão não se restringe às bonecas hiper-realistas ou aos bots de IA. Ela atravessa o modo como habitamos o digital – dos filtros que transformam rostos nas redes sociais até as lives de NPCs, passando pela explosão de notícias falsas.

 

“Nossa vida é povoada por objetos idealizados, com aura de perfeição. Eles deixam de ser ponte para algo e passam a substituir aquilo que representavam”, observa Alves.

 

O resultado é uma cultura hiperestimulada e hipersaturada, na qual o espaço simbólico vai sendo comprimido. O digital toma conta do imaginário. E o imaginário, em algum momento, quer se tornar digital.

 

“O mundo digital vai tornando o artificial mais aceitável que o imperfeito da realidade. É como se a gente preferisse a versão limpa, controlada e esteticamente impecável do vínculo, mesmo que ela não seja viva.”


INTIMIDADES ARTIFICIAIS E EMPATIA SINTÉTICA

 

 

O que essas tecnologias prometem é algo sedutor: uma relação em que o outro não está lá. Em que o outro não responde, não cobra, não se opõe. Um bebê reborn, por exemplo, não chora. Ele pode ser guardado no armário. Uma IA conselheira dificilmente dirá algo incômodo, principalmente se a pessoa estiver pagando por esse serviço.

 

“É como alguém que deseja um casamento onde não haja conflito, onde o outro só diz sim. Isso não existe. Não tem conflito, não tem frustração, não tem alteridade. Mas esse é justamente o ponto de atração da fantasia”, aponta Dunker.

 

No começo de maio, o fundador da OpenAI, Sam Altman, explicou sobre a mudança dos modelos do ChatGPT após reclamação dos usuários que o chat estava dando respostas muito elogiosas.

 

A busca por conforto emocional em vínculos previsíveis tem se consolidado como tendência cultural. André Alves chama esse fenômeno de “intimidade sintética”: relações que simulam cuidado, empatia e presença, mas funcionam sem os elementos imprevisíveis que compõem o afeto humano, como o desencontro, a frustração e o silêncio.

 

“É uma parentalidade ou uma amizade que podem ser desligadas. É falso, mas sinto algo verdadeiro. E isso já basta para muita gente”, diz. “São vínculos que não cobram nada, não desaparecem, não doem.”

 

Fotos: Reprodução

 

Essas relações, segundo ele, não se limitam aos bebês reborn. Estão também nos aplicativos de IA que simulam conversas profundas, aconselham, confortam, elogiam. São ferramentas criadas para gerar a sensação de vínculo e, por isso mesmo, cada vez mais utilizadas como companhia.

 

O psicólogo e designer Marcio Berber Diz Amadeu, pesquisador do programa Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP, vê esse movimento como consequência direta da forma como projetamos a humanidade sobre máquinas.

 

“Temos uma predisposição biológica para formar laços. Quando uma tecnologia simula algo humano, isso funciona como um catalisador para a relação”, explica.

 

A eficácia dessa simulação não depende de verdade ou consciência – basta parecer alguém. “É fácil acreditar que o GPT sente empatia, assim como é fácil acreditar que uma boneca reborn é um bebê. Mesmo sabendo que não são.” Para ele, a chave está na vulnerabilidade humana. “A máquina não está ali. Mas a nossa vulnerabilidade está.”

 

NÃO É O BEBÊ REBORN, SÃO AS REDES

 

Se a ideia de brincar com um boneco hiper-realista pode parecer um sintoma de evasão do real, a artista e pesquisadora canadense Emilie St-Hilaire propõe uma leitura mais complexa e mais próxima da realidade de quem vive nesse universo. Ela estuda a comunidade reborn há quase uma década e atualmente faz doutorado sobre o tema na Universidade de Concordia.

 

Emilie diz que é mais comum ter pessoas que colecionam as bonecas, que as tratam como objetos e que, nas redes, fazem vídeos de “roleplay”, modalidade em que se cria e atua em uma história fictícia.

 

Antes, tais conteúdos eram destinados para o YouTube e para canais específicos de quem coleciona bonecas. Por conta dos algoritmos do TikTok, os vídeos começaram a chegar a quem não faz parte da subcultura. O hiper-realismo das histórias e dos bebês confundiu. Muitos acreditaram que o que estava ali era real e que as criadoras, de fato, tratavam seus bonecos como bebês.

 

“Nunca conheci uma colecionadora que acreditasse que a boneca é um bebê de verdade. Isso só existe na ficção e nas redes sociais”, afirma. “O que existe é uma relação com a arte, com o toque, com a estética. E, para muitas pessoas, também com o cuidado.”

 

Emilie explica que os conteúdos mais performáticos, como vídeos de “parto reborn” ou de troca de fraldas “sujas”, devem ser lidos dentro da lógica das redes e não da lógica do desejo dos indivíduos. Eles são encenações que atraem visualizações, monetização e pertencimento digital.

 

De fato, o exagero traz retorno. O vídeo do nascimento de um boneco publicado pela brasileira “Sweet Carol” teve 115 milhões de visualizações, quase quatro milhões delas nos últimos dias. Já a publicação de Yas Reborn, em que ela reconta, “o que aparece no TikTok é um exagero para ganhar curtidas e comentários”

 

DÁ PARA ENCOMENDAR, SE QUISER

 

Mesmo quando se apresentam como vínculos afetivos ou práticas artesanais, as intimidades artificiais não escapam da lógica de mercado. No universo reborn, os vídeos mais assistidos funcionam também como vitrines: o bebê em cena está disponível para encomenda, o kit pode ser comprado com desconto, a experiência é parte da performance.

 

No mundo das IAs, dos aplicativos de companhia como o Replica, os serviços oferecem planos pagos, respostas emocionais calibradas, versões premium da escuta afetiva.

 

O vínculo não é só com a boneca ou com o chat, mas com a plataforma. E é aí que o jogo entra novamente no vale da estranheza da intimidade. Porque se torna uma experiência afetiva mediada por uma cadeia que depende da permanência do usuário nela.

 

a chave está na vulnerabilidade humana; a máquina não está ali, mas a nossa vulnerabilidade está.

 

Esses vínculos são reforçados por mecanismos que recompensam a simulação bem-feita. “Quanto mais a relação simula o real, mais ela rende. Mais atenção, mais clique, mais venda”, afirma Marcio Berber Diz Amadeu.

 

Mas ele alerta: não se trata apenas de design emocional e sim da exploração de uma vulnerabilidade humana. “A tecnologia responde à nossa fragilidade, mas também aprende com ela. O risco não está apenas no laço com o artificial, mas na forma como as empresas capitalizam esse laço. Elas entendem o que nos falta e transformam isso em produto.” Não é à toa que Mark Zuckerberg está apostando nos amigos e conselheiros de IA.

 

Talvez o que assuste não seja o hiper-realismo dos bebês reborn ou a eloquência dos chatbots. O que incomoda de verdade é o quanto esses vínculos, por mais artificiais que pareçam, funcionam. Aliviam, consolam, organizam. Em um mundo exausto, descompassado e solitário, vínculos sob medida não soam tão absurdos assim.

 

Curtiu? Siga o PORTAL DO ZACARIAS no FacebookTwitter e no Instagram

Entre no nosso Grupo de WhatAppCanal e Telegram

 

No fim, o “vale da estranheza” talvez não seja mais um território de exceção. Talvez ele tenha se tornado o novo normal da intimidade onde o outro é programável e o afeto, entregável.

 

Fonte: Fast Company Brsil

LEIA MAIS
DEIXE SEU COMENTÁRIO

Nome:

Email:

Mensagem:

Copyright © 2013 - 2025. Portal do Zacarias - Todos os direitos reservados.