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31/10/2021

Bolsonaro envergonha evangélico, mas o atrai pela defesa da família, diz antropólogo

Foto: Reprodução

Julian Spyer

Quando lançou “Povo de Deus”, em outubro de 2020, Juliano Spyer, 50, não imaginava que tantos políticos de esquerda abraçariam o livro – que reúne pesquisas e conclusões de diversos pesquisadores sobre os evangélicos no Brasil.

 

A obra, que já contou com o entusiasmo de deputados como Tabata Amaral (PSB-SP) – colunista de Folha– e Marcelo Freixo (PSB-RJ), tiveram impulso renovado em maio, quando recomendado por Lula em reunião do PT-RJ, ganhando assim ares de uma “Bíblia” para este terço do eleitorado.

 

O rótulo incomoda o antropólogo, que conversou com o Folha por chamada de vídeo.

 

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Seu livro teve grande influência na esquerda, o que demonstra dificuldade em se aproximar do público evangélico. Foi planejado? É uma surpresa. Eu me formei no departamento de história da USP, vivi um policiamento ideológico lá e, talvez por isso, escrevi o livro.

 

A intenção nunca foi fazer um manual, porque um manual instrumentaliza o conhecimento, enquanto meu livro diz outra coisa: “Preste atenção, você tem cometido alguns erros, e aqui estão algumas reflexões de antropólogos e sociólogos sobre isso”.

 

Eu queria fazer uma provocação, e as pessoas gostaram, em parte porque o argumento é muito sólido: o Brasil não terá mais maioria católica para se tornar protestante em exatamente dez anos, num trânsito religioso sem precedentes no mundo.

 

Em 2018, o evangélicos deram dois terços de seus votos a Bolsonaro, e muitas análises dizem que isso decidiu a eleição. Então, mais do que abraçar esse público, há a questão prática de entender e se envolver com esse assunto, para sobreviver neste novo Brasil – e não apenas na política.

 

Por que é tão difícil para a esquerda lidar com essa enorme parcela da população pobre do Brasil? [A cientista política americana] Amy Erica Smith mostra que há um descompasso recente entre as lideranças políticas do país e as visões do povo brasileiro – não necessariamente evangélico – e que isso tem muito a ver com a família.

 

Para dar um exemplo: de todos os personagens da cosmovisão popular, o único que resistiu na periferia de Salvador onde morei e pesquisei, de 2013 a 2014, foi o lobisomem. E não era o lobisomem europeu: a questão central era o cara ser bestializado a ponto de bater no pai, na mãe, na avó.

 

É uma grande ofensa, e esse tipo de valor familiar está muito associado ao grande número de brasileiros de origem rural que transformou o Brasil de um país 70% rural em 80% urbano, ao migrar em massa para as cidades no século XX. parte das pessoas vem desse fenômeno e trazem consigo uma visão familiar com valores muito tradicionais de respeito e obediência.

 

E isso vai de encontro direto a agendas como o tema LGBTQIA +, a legalização do aborto e das drogas, coisas caras à esquerda atual. Como sair desse dilema? Em primeiro lugar, quero dizer que estou do lado da pessoas que defendem essas agendas. Todos esses tópicos são importantes para mim.

 

Agora, pela minha experiência etnográfica, se eu pensar no mundo evangélico como um público de mil pessoas e perguntar: “Quem aqui é a favor do aborto?”, Três pessoas vão levantar a mão. Se eu perguntar quem é pró-drogas, quatro ou cinco. Mas se eu perguntar “quem é a favor de uma escola de melhor qualidade?” Eu deveria ter 60%. “Quem é a favor da proteção das florestas?”, Cerca de 30% ou 40%.

 

Isso muda necessariamente o eixo do debate visível de muitas esquerdas, não é? Há mais espaço para o diálogo do que foi explorado, e há essa vasta literatura sobre camadas populares que explica isso e que cito no livro. Porque, no fundo, não se trata de evangélico. Isso tem a ver com o preconceito de classe que as classes média e alta têm em relação aos pobres.

 

Para eles, quanto mais próximos estão os pobres, mais problemáticos eles se tornam, e isso influencia o modo como a política lida com eles. Mas quando esse pobre se converte ao pentecostalismo, sua percepção da sociedade muda.

 

Assim? Na conversão, ele ganha a oportunidade de começar do zero: ele pode ser quem ele quiser e entende que não é nem melhor nem pior do que ninguém. Não quer ser comandado nem aceita ser apadrinhado.

 

Há muitos anos, presenciei uma cena entre uma importante autoridade política de esquerda e uma faxineira evangélica, assim que ele assumiu o governo e mudou-se para a residência oficial. O telefone tocou, a faxineira atendeu e ele disse: “Ele disse que eu não estou”. Ela respondeu que não ia responder porque era mentira e ela não podia mentir. No dia seguinte, ela foi demitida.

 

É esse choque que precisa ser mitigado. Essa arquitetura do casarão e da senzala foi muito impregnada pelo catolicismo e faz sentido até para os ateus. É quando fala o ministro Paulo Guedes, do ponto de vista não católico: “Quem são estes empregadas domésticas que estão viajando para a Disney?”

 

O problema é que a esquerda também está perguntando: “Quem são esses evangélicos para pensar que podem participar da política?” E a política de esquerda geralmente atua como uma vanguarda intelectualizada guiando as pessoas.

 

Folha Jus Dia

 

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Em outras palavras, no final, essa incapacidade se reduz a um sério mal-entendido das camadas mais pobres? E então voltamos ao problema da bolha. Dependendo da bolha, dá a impressão de que todo mundo está falando sobre um assunto, mas é apenas a impressão de um Brasil a que me refiro como “Bélgica”, enquanto o resto é “Haiti”. O “Haiti” tem muito mais presença na “Bélgica” do que o contrário, entra nas casas da “Bélgica” diariamente, mas a “Bélgica” não domina tanto no “Haiti”.

 

E aí os evangélicos ganham peso: aumentam o contato quase inexistente entre ricos e pobres no Brasil – que vivem, segundo a etnógrafa Claudia Fonseca em seu livro “Família, Gofoca e Honra” [2001], em um regime de separação semelhante ao apartheid sul-africano.

 

Como eles aumentam esse contato? O cristianismo evangélico é uma religiosidade que aproxima as pessoas da classe média. Você vê: não leva ao enriquecimento, mas leva, primeiro, a uma disciplina geral: deixar de ir ao bar, usar drogas, ter relacionamentos fora da família. E a vida fica melhor.

 

Se você vive no mundo tenso da periferia, a vida evangélica protege o indivíduo e é a rede de contatos de que você precisa. Se alguém levar um tiro, nenhuma ambulância vai chegar lá, então você precisa ter ou conhecer alguém que tenha um carro. Quando o indivíduo é reconhecido como evangélico, a vi0lência* policial também se desvia dele de certa forma.

 

Em segundo lugar, essa disciplina incentiva o ganho na educação. Para as camadas mais populares, a escola é um tópico muito complicado. Existem muitas questões de hierarquia familiar, de como as pessoas aprendem a trabalhar, então a escola não é o lugar que a família popular aposta tanto.

 

Mas a aposta evangélica: saber ler quando o pastor manda abrir a Bíblia é uma forma de distinguir uma dignidade pessoal. E isso se desdobra, porque abre possibilidades de empregos, bancos, interesse em diplomas, treinamentos e usos de tecnologia que têm consequências.

 

Em 2017, pesquisa da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, identificou o morador da periferia de São Paulo como alguém que vê no Estado um agente causador de obstáculos. Você concorda? Combine os termos. O que ouvi muito foi o discurso de que o político é um mentiroso.

 

Mas há exceções: uma senhora muito pobre e analfabeta disse-me certa vez: “Ah, mas foi fulano que foi ele que pôs luz aqui na rua: por ele eu voto”. Geralmente falamos dos brasileiros pobres como manipulados e alienados, mas minha impressão é que os brasileiros pobres são os que votam melhor, porque votam no que é mais real para eles.

 

E por que o Bolsonaro ainda tem apelo entre os evangélicos? É muito menos religião do que outras coisas, e isso não é muito falado. Bolsonaro envergonha muito os evangélicos, por serem católicos, agressivos, falar de armas. O que mobiliza as camadas populares evangélicas a votar em Bolsonaro é que ele é o único candidato que defende claramente a família tradicional. Portanto, há margem para que essa população se veja representada por outras mais compatíveis com esses valores.

 

Como os evangélicos digerem o debate sobre armas? Não vejo isso como algo que ressoa bem em qualquer igreja evangélica. Falar de armas é um medo para a evangélica, que já mora em locais violentos. É constrangedor para o crente que se diz pocketnarista, porque tem que defendê-la nas igrejas que ficam nos bairros mais pobres e violentos das cidades brasileiras.

 

A análise política estereotipou um pouco o evangélico pentecostal. Como você vê a relação entre o pocketismo e outro cristianismo? Esta imagem mental de que apenas o evangélico pentecostal estava associado ao pocketbookism é errada e injusta. Só para falar da Assembleia de Deus, existem várias igrejas autônomas, nas quais muitos pastores e fiéis não se alinham com os líderes políticos mais conhecidos.

 

Na literatura, fala-se mais de um cristianismo conservador: católicos, espíritas e protestantes históricos, que são os evangélicos que tiveram mais representantes no primeiro escalão do governo do que os pentecostais.

 

Você relata que existe um tipo diferente de emancipação feminina dentro do pentecostalismo. Como isso acontece? É uma perspectiva muito diferente das mulheres de classe média e alta, para quem empoderamento significa ser independente e romper laços. No contexto popular, como ouvi de uma evangélica, “é fácil quando você tem um emprego, dinheiro no banco e uma família que ajuda”.

 

Então o que a literatura diz é que o empoderamento das mulheres evangélicas se dá pela redução do poder dos homens, que deixam de viver uma vida mais “masculina”, no sentido mais conservador do termo, e passam a ter sua rede de amigos dentro a Igreja.

 

Em seguida, a mulher é incentivada pela igreja a investir no relacionamento, mesmo enfrentando infidelidade e abuso no processo. Mas quando ela consegue trazer toda a família para a igreja, a vida se torna mais previsível – porque ela sabe onde está o marido – e ela obtém um status de poder dentro de casa, como mediadora do sagrado.

 

E a questão da vi0lência* doméstica? É uma situação complexa: há pesquisas que dizem que o cristianismo evangélico esconde os problemas, e não tenho dúvidas de que esses casos acontecem. Mas sempre fico preso ao fato de que, se as mulheres são maioria nas conversões pentecostais e lideram esse processo, certamente enxergam vantagens: autonomia, segurança, empregos fora do bairro, educação continuada e até a espera de ter filhos em nome dos profissão.

 

Quando pesquisei em Salvador, não consegui falar com nenhuma mulher adulta, porque dava espaço para fofoca, mas com a evangélica não tinha esse problema, não era o mesmo fardo de vigilância que a sociedade. Com isso, ela consegue ter um espaço maior para sua atuação. E neste Brasil popular, quando toda a família está dentro da igreja, verifica-se que as mulheres encontram trabalho com carteira de trabalho assinada com muito mais facilidade.

 

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RAIO X

 

Julian Spyer, 50, Ele nasceu em são paulo. Historiador formado pela USP, tornou-se Mestre e Doutor em Antropologia pela University College London. Ele trabalhou nas redes sociais para a campanha presidencial de Marina Silva em 2010. Atualmente é chefe de insights comportamentais da empresa Behup. Autor de “Povo de Deus – Quem são os evangélicos e por que são importantes” (Editorial Generation, 280 páginas).

 

Fonte: Folha De S.Paulo

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