18 de Abril de 2024 - Ano 10
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08/08/2020

Em quase cinco meses, a Covid-19 matou 100 mil brasileiros. Qual o significado dessa perda?

Foto: Reprodução

Em quase cinco meses, a Covid-19 matou 100 mil brasileiros...

 Como dimensionar ou representar a perda de 100 mil pessoas e suas consequências?

 

"Quem realmente compreende são os que choram os mortos. Para cada óbito, há entre 4 e 10 enlutados. Podemos ter quase 1 milhão de enlutados da Covid-19", explica Tom Almeida, fundador do movimento inFINITO e do Guia de Despedidas Virtuais. E esse número não calcula os parentes e amigos dos que perderam a vida por outras causas e que também não puderam realizar seus rituais de despedida.

 

Para os que não estão diretamente envolvidos com a doença e suas consequências, o grau de sensibilização é variável. "Não culpo os que não entenderam a dimensão da pandemia. As informações que chegam, mesmo das autoridades, são discordantes", observa Paulo Sérgio Boggio, pesquisador de neuropsicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

 

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PANDEMIA E DESUMANIZAÇÃO


As analogias, podem ajudar a ter noção da violência imposta pelo novo coronavírus. No entanto, a catástrofe, transformada em números que aumentam dia após dia, se torna cada vez menos palpável. "Não individualizar os mortos produz um anestesiamento social", avalia o psicanalista Fábio Luís Ferreira Nóbrega Franco. Ele lembra a filósofa americana Judith Butler, para quem as perdas só são percebidas quando sentimos que o que foi perdido fazia parte de nós mesmos.

 

Ainda assim, no Brasil, a compreensão da tragédia que nos abateu passa pela sensibilização sobre desigualdade social, que acaba determinando por quem se faz — ou não — o luto.

 

A doença, que chegou ao Brasil de avião, "a bordo" dos brasileiros de classes alta e média, hoje vitima os que fazem parte das camadas mais empobrecidas. "Elas não têm acesso aos serviços do poder público, não têm rendimentos que lhes garantam mesa, cama, higiene adequadas. São invisíveis à classe média e aos privilegiados", explica Roberto Romano, filósofo e professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

 

Passado o choque inicial, os gritos de dor das vítimas já não encontram mais eco nem nos telejornais. "São vidas que, socialmente, sequer são consideradas vidas dignas. Sequer são consideradas vidas", lembra Franco.

 


ANTROPOLOGIA DAS EMOÇÕES


Grandes acontecimentos mudam o curso da história não apenas pelo inesperado: o sofrimento, o trauma pessoal e coletivo modificam o futuro da sociedade de formas imprevistas. Foi assim com o Holocausto, com as bombas atômicas sobre o Japão, com o rompimento da barragem de Mariana (MG).

 

Por sua dimensão global, a pandemia pode ser considerada um "evento crítico". Quando uma doença nova modifica rotinas e leva embora 100 mil pessoas em menos de 5 meses, tudo muda. Para além dos efeitos na saúde mental e na economia, causados por um evento crítico, é necessário fazer um inventário, uma antropologia das emoções.

 

O conceito foi proposto pela antropóloga indiana Veena Das, professora da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, que sugere analisar momentos traumáticos a partir do sofrimento cotidiano de suas vítimas, e não de uma perspectiva abstrata e distante.

 

"Um 'evento crítico' tem como característica fundamental a distinção brusca entre o antes e o depois", explica o antropólogo Raphael Bispo, coordenador do grupo de pesquisa Família, Emoções, Gênero e Sexualidades, da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). "Pode parecer até um pouco banal. Não se trata meramente de algo inesperado ou alguma coisa que nos tire do rumo, do prumo — a vida é cheia de imprevistos, mesmo —, mas de determinados eventos que têm grande impacto na vida das pessoas, e que não estão ligados só ao cotidiano delas."

 


COMIGO, COM VOCÊ, COM TODOS


"Eventos críticos", como a pandemia de Covid-19, não têm uma resolução. Eles se prolongam na vida das pessoas, mesmo quando sua densidade passa. As consequências têm duração ilimitada.

 

Entre as vítimas fatais do rompimento da barragem em Brumadinho (MG), em 2019, estava Levi Gonçalves da Silva, cujo corpo só foi encontrado em abril, três meses depois do incidente. Sua nora, Juliana Cardoso Gomes da Silva, conta que vive com a família em um bairro da cidade e batalha para que mais pessoas consigam sair de Córrego do Feijão que, segundo ela, se tornou inabitável.

 

"Nossa vida era todo domingo almoçar com meu sogro e minha sogra. O feijão que nós comíamos era ele quem plantava. Mudou tudo. Meu esposo teve de sair da mineradora, porque não tinha condições psicológicas de trabalhar. Nossa vida virou de ponta-cabeça. Meus filhos viram aquilo tudo, sabe? Hoje, depois de mais de um ano, fazemos tratamento psicológico ainda. Meu menino de 3 anos teve que fazer tratamento com fonoaudiólogo. O de 7 teve bloqueio na leitura."

 

Muitos são obrigados a carregar um estigma pesado, a partir de um "evento crítico". Odesson Alves Ferreira, caminhoneiro aposentado, tinha 32 anos na época do acidente radiológico com Césio-137, em Goiânia. Ele pegou um fragmento com os dedos polegar e indicador, levou à palma da mão esquerda, friccionou e viu que aquilo se transformou em pó. Perdeu duas falanges, a palma da mão, o movimento dos outros dedos.

 

Amigos e parentes se distanciaram, com medo da radiação. Entrou em depressão por ter de deixar de fazer o que mais gostava, "os almoços de família, poder ir e vir pelas estradas na cabine do caminhão. Tudo isso se acabou", diz ele. Passados dois anos, viu-se obrigado a lutar pelos direitos do grupo contaminado. "Aquilo me tirou o direito de sofrer e me deu o dever de lutar." A discriminação das pessoas era a parte mais difícil de lidar. "No começo, Goiânia e Goiás foram brutalmente discriminadas, toda a população era hostilizada. A região e as ruas onde ocorreu o acidente são desvalorizadas até hoje. É muito difícil."

 

Histórias similares às de Levi e de Odesson, que registram sequelas permanentes, sejam físicas ou emocionais, devem se tornar comuns pelos próximos meses, ou anos. Para alguns, as cicatrizes deixadas pela pandemia devem demorar mais a chegar.

 


QUEM SE DEIXA AFETAR?


O impacto de um "evento crítico" muda conforme a cultura ou a nacionalidade. Diego Assis, biólogo que trabalha em uma tese de doutorado na cidade de Florença, na Itália, acompanhou o efeito da pandemia no norte do país. Embora as cidades estejam vivendo uma volta tímida dos turistas nas férias de verão, ele acredita que o povo italiano está mais reflexivo. Acabaram os abraços, os beijos no rosto, o distanciamento social continua a acontecer, e o clima geral é de luto silencioso.

 

"Quando a quarentena começou, as pessoas se viam dentro de casa, mas ainda estavam num estado de 'não preocupação'. Foi a época em que se cantava nas varandas. Isso mudou no dia em que vimos os caminhões do Exército tirarem caixões de Bergamo", conta. "Com esse tipo de coisa acontecendo diariamente, as pessoas foram ficando apreensivas, tomaram consciência do que era a pandemia."

 

Cláudio Paixão, doutor em psicologia social e professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), conta que, na superfície, talvez o brasileiro não esteja mostrando mudança, mas psicologicamente, muitos já sentem o impacto. "Tudo que acontece na nossa vida é apropriado pelo inconsciente. Se uma situação social gera angústia, o cérebro produz uma tentativa de resolver essa angústia. O sonho da máscara é um sonho recorrente, algumas pessoas já me contaram isso. Essa máscara tem um status simbólico."

 


O BRASIL NO ESPELHO


O que virá depois de o Brasil chegar a essa marca trágica? Talvez não venha nada diferente: o país já vive um clima de "dia seguinte", mesmo com o aumento no número de casos e óbitos. Enquanto ainda não se sabe quando as aulas vão voltar, bares e restaurantes reergueram suas portas, dentro de novos limites de ocupação.

 

O fato é que a Covid-19 esgarça e aprofunda a fratura social brasileira: nos últimos 10 anos, fomos da euforia ao medo. A polarização política se acirrou, barragens se romperam, prédios pegaram fogo, houve um impeachment, a crise econômica bateu. Eis que, da noite para o dia, numa situação em que o coletivo dependia de ações individuais, ignorar o uso de máscara, gostar de cloroquina e não ter receio de aglomerações virou declaração política, prova "de que lado cada um está". O "cada um por si" venceu?

 

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Para o antropólogo Raphael Bispo, a rotina vai voltar diferente. "É muito difícil fazer qualquer tipo de previsão diante de um evento crítico, porque ele muda as regras do jogo, abre as regras que regem a sociedade para o imponderável, podendo repetir padrões já existentes ou realizar uma mudança muito grande."

 

Uol

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