Jessica Ellen:
Ao batizar o single que lança hoje de “Macumbeira”, a atriz e cantora Jéssica Ellen provoca e acolhe ao mesmo tempo. Provoca os intolerantes religiosos e a ignorância de quem usa a palavra para atacar. Acolhe pessoas que compartilham com ela a fé em religiões de matriz africana, historicamente perseguidas no país.
A música, que tem levada de ponto de macumba e arranjo que mistura atabaque e acordeon, é de autoria do historiador, compositor e babalaô Luiz Antonio Simas, e ganhou direção e produção musical de Rafael dos Anjos. Ela chega às plataformas digitais neste Dia da Consciência Negra não por acaso. É um canto forte de autoafirmação de fé e autoestima do povo preto.
Também é um grito de alerta sobre as queimadas a e política ambiental do governo atual. “Você quer matar a mata/ mas a mata te mata seu escroto”, diz a primeira estrofe da letra (“a gente não respira dinheiro, né?”, questiona Jéssica), que celebra “pombagiras”, “pretas velhas” e “caboclas”. A canção abre caminho para outras seis que vão compor um EP homônimo que a artista lançará em 20 de janeiro, dia de São Sebastião, padroeiro da cidade. Todas as composições celebram entidades da umbanda.
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Para explicar o efeito que deseja causar com “Macumbeira”, Jéssica, que este ano se destacou na pele de Camila da novela “Amor de mãe”, cita como exemplo a palavra “sapatão”. Aplicado pejorativamente para definir lésbicas, o termo foi totalmente ressignificado por elas.
— Se apropriaram de uma palavra usada para agredi-las e, hoje, se definem assim de maneira carinhosa — diz. — Macumbeira tem isso. As pessoas olham uma oferenda na rua e dizem “chuta que é macumba”. Meu desejo é fazer com que se tenha orgulho em falar e assumir. Porque não há nada de mal, é uma escolha pessoal, que não afeta ninguém.
Ainda assim, quando se iniciou no candomblé, em 2017, Jéssica teve que dar muita satisfação por aí.
— Fiquei careca para a minha iniciação, e me perguntavam muito: “mas não tem medo de perder trabalho?”. Medo eu tenho de perder a saúde ou de mau caráter.
Convicta de sua escolha e tendo Oxum e Iansã como orixás-guia, a atriz diz não querer catequizar ninguém, apenas exigir o direito de exercer livremente a religião que escolheu. Ela também critica quem segue um certo modismo atual em torno do candomblé e da umbanda, como muita gente que anda exibindo sua religiosidade em posts pseudodescolados nas redes sociais. Seria por fé ou por likes?
— É uma hipocrisia usar branco na sexta-feira, que as pessoas acham cool, e não defender os terreiros quando são atacados — aponta Jéssica. — Conheço muita gente que toma banho de erva e faz simpatia, mas quando terreiros são invadidos não fala nada. Se pessoas conhecidas usassem a voz no Twitter para denunciar essa violência, ajudaria muito. Vivemos um momento em que não dá mais para fingir que as coisas não acontecem.
Jéssica acha a música uma eficiente ferramenta para se comunicar. E não é a primeira vez que ela lança mão do recurso para falar de suas convicções. Em 2018 lançou “Sankofa” (na tradição africana, significa aprender com o passado para construir o futuro), um disco que fala de candomblé e homenageia sua família. Lançou ainda “Madá”, um clipe-tributo à avó. Agora, mergulha mais fundo em sua ancestralidade com “Macumbeira”, música dedicada ao avô. Praticante de umbanda e filho de Xangô, ele foi o responsável pelo primeiro contato de Jéssica com a espiritualidade.
— Cresci pegando doce de Cosme e Damião, tomando “bença” de caboclo, vendo ele contar histórias de terreiro e ouvir discos de Clara Nunes e Bezerra da Silva — enumera a atriz de 28 anos.
Nesses oito meses de isolamento social por causa do coronavírus (que ela contraiu sem gravidade), Jéssica aproveitou para revisitar e se aprofundar na história de sua família. Cria da favela da Rocinha, ela tem na mãe, empregada doméstica, nas avós e nas tias que a criaram, o exemplo mais genuíno da força da mulher preta e pobre.
— Sei pouco da história da minha família. Sempre pergunto à minha mãe e à minha avó sobre suas lembranças. Gosto dessa pesquisa familiar, e me encanta a cultura da oralidade da umbanda e do candomblé. Como somos um país colonizado, acabamos não tendo esse registro dos nossos antepassados.
Reconhecer as chagas
Fotos: Reproduções
Resultado de um apagamento histórico e violento do povo negro, cuja memória o país precisa resgatar, aponta Jéssica.
— Em qualquer esquina da Alemanha você vê referências ou museus sobre o Holocausto. É importante manter as feridas abertas. Tive um professor alemão que deu uma bronca em um aluno que fez uma piada. A escravidão tem que ser motivo de vergonha para a gente assim como o Holocausto é para os alemães — afirma. — Mas hoje, no Brasil, há quem questione se houve escravidão aqui, assim como quem nega a ditadura. Enquanto não reconhecermos as chagas não há como curá-las ou revertê-las.
No que se refere à contribuição individual na luta antirracista, ela diz que precisamos “ir além do quadradinho preto no Instagram”. Mas enxerga que, neste ano de 2020, algo avançou.
— O assassinato de George Floyd e o isolamento social fez a gente perceber que não há opção, temos que olhar para essa questão — observa. — Acho que houve uma tomada de consciência das pessoas, mas não adianta fazer um projeto e ter a equipe formada só por gente branca. Tem que sair do discurso e ir para a ação.
Foi com um discurso, no entanto, que Jéssica roubou a cena em “Amor de mãe”. Intérprete da professora de história Camila, ela emocionou o público falando que ser mulher em seu contexto cansa sim, e que nem sempre é possível ou desejável ser uma guerreira. A cena viralizou e marcou a novela, cujas gravações foram encerradas há uma semana, após uma reta final cercada de rígidos protocolos de segurança.
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— Não poder tocar e abraçar o outro em cena mexeu muito no nosso jeito brasileiro de atuar. Mas o que mais me marcou nesse processo foi perceber o alcance da arte e o quanto podemos botar o dedo em muitas feridas sociais — afirma a atriz, que também está no elenco do filme “Três verões”, de Sandra Kogut.
Fonte: O Globo