Especialistas pressionam por uma revisão das proteções ambientais do Oceano Antártico e a reforma do órgão responsável pela conservação da vida marítima local
Conhecida como a "última fronteira", a Antártica pode parecer uma realidade remota, isolada por geleiras, tempestades e clima extremo. O continente, no entanto, está mais próximo do que se imagina, com ventos que influenciam o clima global e correntes marítimas que alimentam todos os oceanos.
Apesar do papel crucial que desempenha no equilíbrio climático da Terra, a Antártida segue frequentemente negligenciada nas decisões políticas globais, enquanto suas águas sofrem os impactos crescentes da pesca industrial e das mudanças climáticas. Diante desse cenário, cresce a pressão por uma revisão das proteções ambientais do Oceano Antártico, como destaca o relatório do grupo Defensores da Antártica, divulgado nesta terça-feira durante a terceira Conferência da ONU sobre os Oceanos (UNOC3), em Nice, na França.
Um dos problemas mais conhecidos e urgentes, destaca o documento, é a exploração predatória do krill, um pequeno crustáceo marinho que é a base da cadeia alimentar da fauna local, como pinguins, baleias, focas e aves marinhas — estima-se que cerca de 80 milhões de toneladas de krill sejam consumidas anualmente.
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Alvo crescente de pesca industrial — por ser uma fonte rica de óleo ômega-3 e pela sua utilização em rações animais — a espécie também desempenha um papel central no ciclo do carbono, capturando-o da superfície e contribuindo diretamente para a regulação climática. Alguns estudos, cita o relatório, sugerem que, sem a ação do krill, haveria 50% mais de CO² na atmosfera.
O cenário se agrava quando se leva em conta que as embarcações industriais altamente mecanizadas competem com os predadores naturais pelo krill, que, por sua vez, já enfrentam os efeitos combinados do aquecimento acelerado dos oceanos, acidificação da água e derretimento do gelo marinho.
— Estamos lidando com um sistema de múltiplos fatores de estresse. Quando falamos de pesca predatória e de todos os problemas reais que afetam o ecossistema como um todo, isso está diretamente relacionado aos problemas globais das mudanças climáticas — explica o professor Ronaldo Christofoletti, presidente do Grupo de Especialistas em Cultura Oceânica da Unesco e pesquisador do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
— Porque, se houver pesca excessiva e um sistema instável na Antártida, não teremos uma Antártida saudável. E, sem isso, o continente não conseguirá cumprir adequadamente o papel que tem no equilíbrio climático.
Para conter o estresse cumulativo sob o qual a fauna marinha antártica está submetida, os cientistas e ambientalistas pedem também a ampliação da rede de Áreas Marinhas Protegidas (AMPs) na Península Antártica, uma das mais afetadas pelo aquecimento global e pela concentração da pesca de krill.
A criação e a gestão dessas áreas dependem da Comissão para a Conservação dos Recursos Marinhos Vivos da Antártida (CCAMLR), organismo internacional criado em 1982 com o objetivo de conservar a vida marinha antártica. No entanto, desde então, apenas duas AMPs foram estabelecidas por consenso, uma na Plataforma Meridional das Ilhas Órcades do Sul, em 2009, com cerca de 94 mil km², e a do Mar de Ross, com 2,09 milhões de km² — esta sendo a última aprovada, em 2016.
Propostas de proteção para áreas como o Mar de Weddell, o Leste da Antártida e a própria Península Antártica vêm sendo barradas por alguns países — notadamente Rússia e China — que exercem poder de veto e alegam falta de base científica ou impacto econômico excessivo sobre suas frotas pesqueiras.
— Uma delas, por exemplo, é a Zona 1, que corresponde à área da Península [Antártica]. Essa área se destaca porque a península se projeta, e as correntes acabam contornando essa região. Além disso, essa península concentra muitos equipamentos de pesca, estando mais próxima devido à dinâmica das correntes e ao gelo, especialmente antes do inverno — explica o assessor de Políticas Oceânicas da Blue Marine Foundation, Maximiliano Bello.
— A área abriga grande parte da vida de diferentes aves e animais e foi proposta pelo Chile e pela Argentina. No entanto, apesar de ser uma das melhores propostas que já vi, tanto em termos de pesquisa quanto na organização dos argumentos e na forma como foi elaborada, ela não foi adotada.Além disso, sob a CCAMLR, havia um limite preventivo de 620 mil toneladas por ano para a pesca de krill, com suspensão da atividade ao atingir esse volume.
No entanto, em 2024, a falta de consenso no órgão levou ao fim das regras que distribuíam a pesca em quatro zonas, permitindo que toda a cota de pesca avance sobre regiões ecologicamente sensíveis. Segundo o relatório, em 2025, dez superarrastões (grandes embarcações) operavam de forma concentrada perto da Península Antártica, realizando pesca quase ininterrupta com apoio logístico que permite até 11 meses seguidos no mar.
Em 2023, a Noruega liderou a pesca no Oceano Antártico, respondendo por 67,2% da captura total, seguida pela China (17,1%), Coreia do Sul (8,4%), Chile (4,4%) e Ucrânia (2,8%).
Além do apelo para uma reforma na CCAMLR, o relatório também pede que 30% das águas antárticas sejam protegidas até 2030, em linha com o Marco Global da Biodiversidade (meta 30x30).
E é nesse ponto, destaca Christofoletti, que o Brasil pode desempenhar um grande papel ao liderar a Conferência da ONU para o Clima (COP30) neste ano, em Belém. Em discurso na abertura da UNOC3, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que é preciso convencer as lideranças a acreditar nas mudanças climáticas e, sobretudo, a investir na educação sobre o tema.
— Quem defende a Amazônia precisa ver a nossa COP30 — disse Lula.Apesar da distância da Amazônia com a Antártida, todos os sistemas estão conectados, como explica o professor Christofolloti. Isso porque o oceano absorve o calor da atmosfera de todo o globo, particularmente das áreas tropicais. Então, por meio das correntes oceânicas, o calor "desce" até a Antártida, onde a temperatura é mais baixa, e então torna a circular, como um sistema do ar condicionado ou da geladeira.
— Tudo o que acontece na Antártida não fica na Antártida. Acontece com todo mundo. Pode parecer longe, mas é o motor deste oceano. Se perdermos esse motor, perdemos o motor da vida, basicamente — comenta Bello.
Na segunda-feira, durante a abertura da UNOC3, o secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou que "o fundo do mar não pode se tornar o Velho Oeste", fala entendida como referência à liberação da mineração em alto-mar anunciada pelo presidente americano, Donald Trump, há um mês, desafiando a ONU e os alertas ambientais.
— As águas profundas não estão à venda, assim como a Groenlândia, a Antártida e o alto-mar. É uma loucura permitir práticas predatórias que alteram e destroem o fundo do mar e a biodiversidade — reiterou o presidente francês, Emmanuel Macron.
Todos os alertas ecoam os dados mais recentes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, segundo os quais a taxa de aquecimento dos oceanos mais que dobrou desde 1993. Em 2023 e 2024, as temperaturas médias da superfície do mar atingiram níveis recordes.
A Antártida, em particular, vem registrando um aumento médio de 0,12ºC por década nos últimos 40 anos, segundo estudos da Administração Meteorológica da China (CMA). Além disso, uma análise do Instituto ClimaInfo divulgada na segunda-feira mostrou que os invernos dos dois últimos anos registraram uma mínima histórica na extensão de gelo do continente.
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— O oceano é o coração deste planeta. É de lá que viemos, é de lá que vêm os céus azuis, a atmosfera, tudo vem do oceano. E precisamos responder a isso também — finalizou Bello. A repórter viajou para Nice com a FGS Global, em parceria com a Iniciativa Oceânica da Bloomberg.
Fonte: O Globo